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Desamparo | "Fui de menina a velha, sem ter passado por senhora" | Entrevista | por Ana Margarida de Carvalho| Revista Visão

 

Dentro de Ti Ver O MarDesamparo – Romance
de Inês Pedrosa
Edição portuguesa: 320 páginas, Dom Quixote.
Edição brasileira: 296, Leya
Edição croata: 208, OceanMore

 

 


"Fui de menina a velha, sem ter passado por senhora"

Inês Pedrosa, a propósito do novo livro, Desamparo, carregado de realidade e atualidade, fala da ausência de mulheres no Syriza, da inveja nas redações, do amor, do tédio, da fé, da geração de escritores entalados, da «era da presentificação» e na amizade virtual: «vale zero»

É um daqueles livros-espelho. O sétimo romance de Inês Pedrosa. Abrimos as páginas e vemo-nos lá dentro, estes formigueiros caóticos de pessoas desempregadas, que andam pelo País de um lado para o outro, os velhos que morrem sozinhos, o abandono pelo Estado, a inexistência de cuidados de apoio continuados, a violência doméstica, o desemprego, o desencontro, o desapego, o «descasamento», o Desamparo.


VISÃO: Escreveu um livro sobre famílias, uma casa, regressos (ao útero, à terra, ao campo...), tudo aquilo que poderia pressupor amparo. E, no entanto, temos mães abandonantes, filhos renegados, casais desajustados, maridos espancadores...
Tudo isso existe, tudo isso é fado. O desamparo é um sentimento instalado de forma muito profunda na sociedade portuguesa, só que, às vezes, não é muito visível. Somos bons a esconder a alegria, somos um povo que nunca diz «estou bem». Ao contrário dos brasileiros, que, na saudação, no cumprimento imediato, respondem «tudo bem, tudo jóia, tudo ótimo». Nós dizemos «vai-se andando...». E até ficamos ofendidos se alguém nos responde «tudo bem». Achamos logo que é uma arrogância. Somos bons a disfarçar a alegria, mas também somos bons a disfarçar a tristeza e a desgraça. Assim como temos a ideia de que somos muito hospitaleiros e muito brandos. Acolhemos estes estereótipos, e todos os dias temos notícias de violência doméstica e mulheres que morrem às mãos dos maridos. Outra das ideias feitas é a de que as famílias antes eram muito unidas e que agora é que existe desagregação. As famílias sempre foram disfuncionais e foco de violência.

«O amor é um animal frágil, da categoria dos roedores», lê-se no último livro de Inês Pedrosa, patchwork de regressos, separações, uniões, encontros (alguns) mal-alinhavados. Como na vida, em suma.

Outra ideia do livro, muito deste tempo, é o regresso ao campo...
Sim, a Visão tem feito, aliás, várias capas sobre isso, também há muitas reportagens de televisão sobre o assunto... Só que essa ideia não tem nada de romântico. É uma vida dura, de sol a sol, e as pessoas fazem, eufóricas, um romance para si próprias: deixar a «cidade má» rumo ao «campo bom». Será que é mesmo? Passei a colecionar recortes dessas histórias: é um fenómeno novo. Por outro lado, ocorreu-me que nunca vi tratada literariamente a história dos brasileiros cá, enquanto, de Camilo a Ferreira de Castro, sempre se falou dos portugueses que iam para o Brasil.

É por isso que as suas personagens são tão transumantes?
Na nossa geração incutiam-nos a esperança de que a nossa vida ia ser melhor do que a dos nossos pais. Agora, vigora o discurso de que os jovens têm de ir para fora, que o mundo é muito competitivo, que não vão ter segurança social, que têm de ser os melhores: esse discurso é contraproducente e estúpido. Nunca tive esse discurso, nem com a minha filha nem com nenhum jovem. Não sabemos nada. Esta crise financeira veio da noite para o dia. Não podemos futurar o melhor nem o pior. Dantes, a existência da Internet era impensável. No livro procurei, dando conta das desgraças, mostrar que, às vezes, num nível simples e pessoal, é possível encontrar um novo sentido para a vida. A jornalista, por exemplo, desistiu de salvar o mundo mas sente-se realizada ao dar mais alegria aos velhos.

Mas é o filho dessa jornalista, um yuppie bem sucedido na América, que lhe chama «lírica». Não se sente também de uma geração um pouco lírica?
Não sinto. O lirismo é que fez o mundo no seu melhor. O Nelson Mandela era um lírico. Os jovens, que são imbuídos no pragmatismo desde criancinhas, vão aprender chinês, não porque tenham qualquer interesse cultural, mas porque querem ganhar dinheiro. E eu pergunto: querem ganhar dinheiro para quê? Famosos endinheirados suicidam-se todos os dias. Fazem falta outros valores, de felicidade, de fazer qualquer coisa de bom pelos outros no quotidiano e de rir por pequenas coisas. O humor é o que nos salva. O humor marca uma autodistância, de nós mesmos, da nossa miséria. Fui educada (hoje já não se faz isto) a dizerem-me «tens de comer a sopa toda por causa dos meninos do Biafra», o que me parecia paradoxal: «Então», dizia eu, «guardem o resto da sopa e mandem para lá». O espírito da culpa pode ser muito mau, mas quando uma pessoa não quer levantar-se da cama pensa: «Nasceste no Afeganistão? Não? Então, levanta-te.» Ter a consciência da sorte que tenho ajuda-me imenso nos momentos mais tristes da minha vida. Pensar que há gente que sobrevive, todos os dias, a muito, muito pior do que ter uma gripe, um desgosto de amor, uma desilusão com alguém. E essa distância faz-me ser capaz de rir das minhas próprias excessivas seriedades. E as personagens do livro também conseguem brincar com os desaires da vida.

E porque diz que, numa redação, essa jornalista «suscitou invejas por não invejar ninguém»?
Estive vinte e tal anos em ambientes de redação e são coisas que se passaram comigo e com pessoas perto de mim. Passam-se mais com mulheres, elas são mais alvo de tudo - de inveja, infelizmente, também, por parte das outras mulheres. As mulheres acederam há pouco tempo aos lugares de chefia e quando chegam têm menos solidariedade entre elas do que os homens. As pessoas já reviram os olhos quando eu digo isto... Ao nível das crónicas, os homens, mesmo di-gladiando-se politicamente, citam-se uns aos outros, mas nunca citam uma mulher, nunca! E isto aconteceu-me a mim. Elas também não fazem isso umas às outras, citam mais depressa os homens. E como se, ao nível do inconsciente, já existisse um lobby ou um clube mediático...

«O humor é o que nos salva. O humor marca uma autodistância, de nós mesmos, da nossa miséria»

Mas agora há um programa televisivo de comentário político só de mulheres...
As pessoas dizem «ah, é só de mulheres». A Quadratura do Círculo existe há décadas e ninguém diz «ah, é só de homens».

Aquilo parece um pouco descontrolado, não acha?
O problema é que as mulheres estão tão pouco habituadas a gerir aquele espaço que se atropelam umas às outras e querem vencer... Os homens já sabem vencer de outra maneira, têm mais traquejo do poder. E depois diz-se «não se pode ver porque são umas galinhas». E uma pessoa acaba por lhes dar razão, o que é horrível.

O que pensa da ausência de ministras no Governo da Grécia?
Estou chocada com a falta de gente a chocar-se. Não estou no Facebook, mas no Twitter imensas mulheres, jornalistas, de esquerda, feministas, ficaram caladas. A única que me deu razão foi a Catarina Martins do Bloco de Esquerda. E os homens de esquerda vieram dizer que isso agora era inoportuno. A participação paritária não é um pormenor. Depois vêm-me com a história de que se as mulheres tiverem qualidade chegam lá. É claro que se nós tivermos qualidade arranjamos editor para publicar um livro. Agora, na política não é assim, porque os interesses instituídos protegem-se. A Virgínia Woolf, coitada, deve estar a dar voltas na cova...

Desamparo, o sétimo romance
Inês publicou o primeiro romance (
A Instrução dos Amantes) em 1992, tem mais de 20 anos de carreira literária. Neste livro há uma carga fortíssima de realidade e veracidade. Não só acontecimentos factuais são convocados - a austeridade, a violência doméstica ou os 230 euros de pensão de sobrevivência... –, como toda a narrativa é atravessada por fenómenos muito nossos, muito reconhecíveis.

Mas no livro também se diz que «a qualidade é um vício a evitar», para não arranjar sarilhos, invejas e conflitos de poder...
Pois, eu queria que isso não fosse verdade, mas também eu passei por isso. Muita gente tem ideia de que se for muito resignada e obediente se safa melhor. E isso nem sequer é verdade, porque são espezinhadas na primeira oportunidade. Nós escrevemos contra o medo. A ficção tem essa função, de dizer que não podemos viver com medo, de dizer não, de desobedecer. As pessoas que pensam que é mais fácil viverem encolhidas e sem opinião não podem falar no mal em que se encontram. Quem fez o 25 de Abril, quem lutou pela democracia, não corria o risco de ser despedido, mas de ser preso e morto.

É por isso que fala na «era da presentificação», como se não houvesse memória nem gratidão para com essa geração do 25 de Abril?
Há pouca memória e ninguém a quer cultivar. Os mais velhos são enxotados das redações. Os EUA têm muitos defeitos, mas os espectadores querem que jornalistas de confiança sejam mantidos, querem essa memória viva. Nós cá somos muito provincianos. Noto que as gerações mais novas foram muito acossadas e têm de se afirmar. Ouço muita gente falar como se não tivesse havido ontem. Como se tivessem vindo salvar o mundo, como se não existisse nada antes deles. Muitas vezes vejo escrito «nunca se escreveu antes» sobre um tema de que já se falou sei lá quantas vezes. Não sabem, porque não leram. E não há gratidão porque ninguém quer dever nada a ninguém. Eu por acaso acho que é uma sensação ótima falar das pessoas a quem devo, até literariamente: isso sim, é uma sensação de família, de amparo. A Agustina telefonou-me a oferecer-se para apresentar o meu terceiro romance. Disse-lhe que seria no Lux. E ela respondeu que adoraria conhecer o bar do John Malkovich. Nessa altura, estava todo decorado com camas, e ela adorou, disse que era o ambiente indicado para ela. Achei de uma enorme generosidade. Ela respondeu--me «é preciso saber que o que nós fazemos não vai acabar.»

Mas já disse que, em termo literários, pertence a uma geração entalada...
É verdade. Eu, o Zink, a Clara Pinto Correia, o Francisco José Viegas, o Pedro Paixão, a Ana Teresa Pereira... Ficámos entalados entre o grande boom dos chamados escritores da guerra colonial e os de agora. Ninguém nos dava muita importância. Nas embaixadas ao estrangeiro, iam os seniores, os consagrados e um ou outro poetazito mais novo...

Os escritores anteriores souberam passar o testemunho?
O que se passa é que, muitas vezes, é mais fácil haver ligação entre avós e netos do que entre pais e filhos. Parece que tem de haver um hiato geracional...

E isso é porque os escritores instalados sentem os novos como ameaça?
Fui muito acarinhada pelo José Cardoso Pires, que se ofereceu para me fazer uma revisão. E pela Agustina. Nunca senti hostilidade, mas também não tive outros apoios, que senti dos mais velhos. Não me ligavam muito. Éramos miúdos, ignorados pela imprensa e pela crítica. Calhou aparecermos muito cedo. Ao Zink e a mim viam-nos como uma espécie de agitadores culturais juniores e então não nos levavam a sério. Eu fui menina muito tempo e de repente tornei-me uma velha, a quem toda a gente trata por você. E não cheguei a ser senhora, não sei como me aconteceu... Passei de menina a velha...

A inveja de que fala entre jornalistas não a encontra entre os escritores?
Não. O Nobel do Saramago arrastou o interesse pela literatura portuguesa. E ele fez um bom discurso sobre a grande força da literatura portuguesa. Os escritores portugueses perceberam que também se vendem para o estrangeiro como um todo, por atacado. Cada um cria um interesse para os outros. Estamos numa luta tão difícil, por um terreno tão curto de leitores, que nos impulsionamos uns aos outros. Enfim, não é preciso ser má pessoa para se ser grande escritor. Há um ou outro que acha que escreve com a mão de Deus e não contacta com o comum dos mortais... Claro que há má-língua, não somos obrigados a gostar todos uns dos outros...

Concorda que não pode haver obras-primas escritas por jovens?
Concordo. A Agustina, falando de uma personagem, e pedindo desculpa por ela entrar no livro já perto dos 6o anos dizia «antes dos 50 ninguém tem história». Acho que não se encontram génios na ficção antes dos 35 anos. Ao contrário da poesia, que estatisticamente é uma arte de juventude, a ficção é da maturidade. É mais ou menos como os 100 metros são para os atletas novos e a maratona para os mais velhos. Vivemos numa sociedade que está a transformar tudo em pronto-a-vestir, mas não sinto muito desespero com isto, porque essa circunstância se virará rapidamente contra os próprios editores e escritores que terão de perceber que o romance é uma obra para ir vendendo. As Sombras de Grey vendem hoje, mas daqui a dez anos não venderão um único exemplar. Ao passo que O Delfim, a Anna Karenina...

E as tribos, as linhagens, os lobbies de escritores?
Existem, mas o mercado é tão estreito que não terão outro remédio senão alargar o espetro. E mesmo aí os «rapazes» protegem-se melhor do que elas. Recusei-me a assinar um contrato no Brasil, se não assinassem primeiro com a Agustina. Ficaram renitentes por causa da promoção, diziam que as capas de revistas poderiam não ter interesse numa mulher mais velha. Isto é de uma crueldade...

«Esta parece a época da telepatia, as pessoas dizem 'estou contigo', mas ninguém é capaz de ir visitar o amigo ao hospital»

E a amizade virtual?
Vale zero. Esta parece a época da telepatia, as pessoas dizem «estou contigo», mas ninguém é capaz de ir visitar o amigo ao hospital porque não suportam o cheiro a éter...

O seu livro em termos de personagens e de sintaxe é um pouco luso-brasileiro. É verdade que os brasileiros se interessam mais pela nossa literatura do que nós pela deles?
Absolutamente. Quando estive a fazer a fotobiografia do Cardoso Pires, descobri uma tese de doutoramento portuguesa e umas dez brasileiras. Nós parámos no Jorge Amado...

Uma sua personagem diz a certa altura «sem fé o mundo é uma espécie de formigueiro (...), onde todos se empurram por um pouco de pão». Qual é a sua relação com a fé?
Tem variado muito e não sei dizer nada de verdadeiro sobre isso. Não acredito num Deus de barbas brancas. Dá-me jeito, volta e meia, acreditar, quando estou muito revoltada, na filosofia hinduísta da reencarnação. E como vejo pessoas muito novas que parece que já viveram muito e outras muito velhas que parece que não aprenderam nada...Gosto da ideia, não sei se acredito nela. Dá-me jeito para não soçobrar perante a injustiça absoluta do mundo. Tenho-me tornado mais crente a partir do momento em que morreram muitos dos que eu amava e sinto que essas pessoas, desde o meu pai a amigos, me dão força, que são uma espécie de anjos, como os do [Peter] Handke, que não me podem ajudar mas que, de alguma maneira, estão presentes. Sinto que, quando alguém se vai embora, fico fiel depositária da memória e, logo, mais forte. Por outro lado, estou com uma grande raiva às religiões. Não há nada de bom que a pessoa possa fazer com a religião que não possa fazer sem ela. Mas há muita coisa de mau que as pessoas fazem só por causa da religião. Para sermos bons não precisamos de religião. Basta-nos o humanismo, o bom senso de partilhar o mundo entre todos.

Mas no amor acredita?
Acredito profundamente no amor ao longo do tempo. Nem toda a gente tem coragem de se entregar e se deixar roer até ao osso. Vivemos tão à defesa que o amor se fragiliza por falta de fé. Tal como perdemos a fé no futuro e na economia. Nós vamos a um casamento e as piadas são sobre o divórcio. Vivemos na tal sociedade da «presentificação» e do fogo de artifício permanente. É muito curioso a quantidade de casais que renovam os votos em praias da Tailândia... Parece que se aquilo não estiver sempre em festa não existe. A sociedade é muito infantilizada e vive-se para o prazer. Não quero parecer moralista mas isso transmite um grande vazio. Acho até interessante experimentar o tédio. Como diz a Duras, o amor tem de se viver com tudo, incluindo o tédio. Eu casei-me aos 29, divor-ciei-me, tive uma filha e recentemente, aos 52 anos, voltei a casar-me, porque sim, por uma profissão de fé no amor. A Agustina tem um diálogo em que alguém diz «os casamentos não duram». E outra responde, «não duram mas repetem-se – e isso é uma forma de duração.»

Entrevista a Ana Margarida de Carvalho, in Revista Visão (Edição de 05 a 11 de Março de 2015)

 

 

 
 
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