Desamparo – Romance
de Inês Pedrosa
Edição portuguesa: 320 páginas, Dom Quixote.
Edição brasileira: 296, Leya
Edição croata: 208, OceanMore
"Quero que as pessoas sintam vontade de serem livres"
No seu mais recente romance, Inês Pedrosa criou uma aldeia imaginária, uma miniatura do país, onde personagens desamparados vivem os anos negros da crise. Em entrevista, a autora fala também da filha, da saída polémica da Casa Fernando Pessoa e de achar «muito triste» António Costa não lhe ter dito nada.
Desamparo parece ser o ponto da situação do país nos anos da troika. Sentiu Isso?
Senti. Embora queira que o livro seja visto de uma forma mais lata. Estou a escrever também sobre nós, sobre as características dos portugueses e sobre a forma como lidamos com a felicidade e a infelicidade. Não é em qualquer país que quando uma ponte cai e acontece uma tragédia, as pessoas vão fazer piqueniques à beira-rio para ver se aparecem os corpos a flutuar. Isto aconteceu de facto em Entre-os-Rios. O livro retrata uma maneira de ser muito nossa e também uma situação actual na Europa. Tem a ver com os chamados 'anos da troika' porque tem a ver com o mal-estar e a sensação de que já não há empregos garantidos e as instituições deixaram de ser confiáveis. É um estado também do mundo e especificamente da Europa, que se tinha na conta de zona privilegiada, onde certas coisas estavam garantidas. Agora as pessoas sentem-se largadas.
O titulo surgiu a que altura?
Logo no início. Estava a ler um livro da Clarice Lispector, escritora de que gosto muito, e encontrei uma frase que pus em epígrafe onde ela descreve o desamparo como o susto de se estar vivo. E acho que a crise fez isso às pessoas: passámos a viver num estado de susto. Com a sensação de que o mundo organizado que conhecíamos desabou. E interessou-me falar dos portugueses, que não são muito expansivos quanto à alegria mas também não são muito expansivos quanto à miséria. Fazemos de conta que está tudo a andar, sabendo que não, mesmo quando temos que comer todos os dias, como o Raul, arroz com latas de atum.
E há também um desamparo mais concreto e anterior à crise que é o dos velhos viverem e morrerem sós.
E o Estado social não lhes encontra solução. Há muitos anos que queria escrever sobre isto. Critica-se muito as famílias, que não dão apoio aos pais, mas as famílias não são fortalezas idílicas. E na meia idade ter que tomar conta dos filhos e dos pais e não ter meios para tudo isto também é cruel. Fala-se que dantes os velhos não eram abandonados. Mas a questão nem se punha. As pessoas viviam menos 20 anos. E as casas de agora são cubículos e não as casas onde cabiam várias gerações. Por outro lado, percebe-se que os velhos não queiram ir para os lares, que são depósitos, embora na província isso seja um pouco diferente.
"Fazemos de conta que está tudo a andar, mesmo quando só temos uma lata de atum com arroz para comer"
No livro há uma Instituição que cuida bem dos velhos da aldeia.
Porque isso existe. Na província ainda há uma rede de cuidados. São réstias de Estado social. Num meo pequeno toda a gente tem uma relação pessoal com os outros, de amor ou de ódio, mas dá-se conta se a pessoa desaparece. No início do livro, a Jacinta começa o dia caída no chão mas umas horas depois vai passar a carrinha do centro social. Foi a figura da Jacinta que puxou o livro, e ela é um caso exemplar. Uma leitora também me falou que se passou exactamente o mesmo com o pai, para o qual não conseguia encontrar solução numa rede de cuidados intermédios. E muitas vezes as pessoas morrem porque desistem de viver. Sentem-se a mais. Pergunto-me muitas vezes se a estas pessoas são prestados todos os cuidados possíveis para que vivam mais tempo.
Acha que não?
Tenho as minhas dúvidas. Em casos onde não há um apoio familiar ou uma pessoa que esteja presente, os velhos são deixados um pouco à sua sorte porque se entende que essa pessoa também já não vai ter muita qualidade de vida. Admito que isso possa ser tido em conta muitas vezes quando há muitos velhos a morrer de gripe, por exemplo.
"A ideia de que o amor ilumina, a ideia de que há uma luz que se acende quando se acredita nisso percorre a história"
Por que escolheu como cenário uma aldeia e não um contexto mais urbano para fazer um retrato do país?
O livro foi-se escrevendo desde que acabei o outro, em 2012, e andei a coleccionar casos, recortes de jornais... Comecei a ver nas capas das revistas, inclusive na Tabu, as histórias do regresso ao campo. E também conheci casos concretos. Pessoas que alugaram as casas que tinham em Lisboa, outras compraram ruínas para fazer turismo de habitação. Muita gente em desespero foi para a aldeia porque pensou que pelo menos podia cavar umas batatas na terra da avó, mas também porque nos sítios pequenos há uma rede mínima de sobrevivência. Há a mercearia que aceita fiado.
É um romance pessimista?
Tentei que não fosse. Acho importante falar sobre todas estas dificuldades e este desamparo em que se vive, mas penso que o desfecho, que é aberto, é mais optimista que pessimista. E, de alguma maneira, várias personagens conseguiram reconstruir as suas vidas. No meio da miséria toda há uma miúda que é quase leiloada, porque perdeu a mãe. O processo não é o melhor, mas acaba por correr bem e ela encontra uma situação familiar feliz. E a ideia de que o amor ilumina, a ideia de que há uma luz que se acende quando se acredita nisso, percorre a história.
"O cinismo que vejo num jovem de 17 anos, o nível de descrença no mundo e nas suas capacidades preocupa-me muito"
A esperança é importante?
Essencial. Tendo eu uma filha – e todos nós que temos filhos – temos que lutar contra a ideia feita de que na Europa a política passou a ser só contabilidade e finanças e a contabilidade é apresentada como uma realidade sem saída. E temos que lutar contra a cultura do sacrifício. Viver a vida como se fosse uma contabilidade de mercearia é completamente estúpido. Como é que podemos saber hoje que a Segurança Social vai falir, por exemplo? Estamos numa fase de evolução permanente. Quem é que podia prever todos os negócios que a internet permitiu? É precisamente o pensamento derrotista que bloqueia a criatividade e a imaginação. O problema é que estamos a criar uma geração de derrotistas, de cínicos. O cinismo que vejo num jovem de 15 anos, o nível de descrença no mundo e nas suas capacidades, porque pensa que não vai ter nenhumas hipóteses, preocupa-me muito. Há ao mesmo tempo uma exigência e pressão enormes ... A minha filha, que tem 17 anos, e vai estudar cinema, contou-me que metade da turma estava a chorar num teste de matemática porque os pais os vão castigar se tiverem más notas. Porque muitos precisam de bons resultados para saírem do país. É uma perspectiva trágica. A minha geração também vivia em crise mas com a noção de que iria ter uma vida melhor que os pais. E os jovens de agora sentem que Portugal é um país pobre e periférico que não tem lugar para eles. Este discurso tem que mudar.
Um romance mobiliza pessoas?
Este é o romance mais político que escrevi, num sentido amplo. Sinto que há uma urgência de acção política. E acho que na consciência das pessoas, pelo menos, os livros fazem mudanças. Obrigam a pensar. Nos romances procuro sempre que as pessoas comecem a sentir vontade de serem livres. E de haver em diferentes personagens acções que mostrem como a cobardia não resolve e apenas agrava o desespero.
A política está na moda por exemplo nas séries de televisão...
É verdade. Vi a série Borgen e havia episódios em que acabava em lágrimas porque me comovia com o facto de, além de haver a luta pelo poder, também haver vontade de criar um mundo melhor. E a personagem central, que chegou a ser primeira-ministra, quando percebeu que o seu partido vendera os seus ideais fundou um outro. E estou muito interessada na política até porque tenho andado a ler muito sobre isso e estou a fazer uma tese de doutoramento em que pretendo ligar o universo da literatura e o da política.
A tese é sobre o quê, exactamente?
É sobre o Jorge Semprún e o Milan Kundera, dois escritores cujas obras têm muita influência da política concreta. Os dois exilados de regimes totalitaristas: o Semprún fugido do nazismo e do franquismo; o Kundera do comunismo. E ambos abandonaram os seus idiomas e passaram a escrever em francês. A tese deverá ter como título qualquer coisa como 'o romance como dispositivo de alerta anti-totalitário'.
Foi directora durante seis anos da Casa Fernando Pessoa (CFP), mas o processo de saída foi conturbado. O que aconteceu?
Estava previsto que saísse ao fim de sete anos e saí um ano antes. Só sou capaz de estar num sítio onde queiram que eu esteja, e percebi que, desde que a CFP passou da Câmara para a gestão da EGEAC, deixou de ser assim. Publicaram-se acusações de que eu teria 'contratado' o meu 'marido', quando nem eu era casada, nem tinha qualquer poder contratual, nem de pessoas, nem de serviços. Nunca fui funcionária pública na vida; sempre estive contratada na CFP a recibos verdes – 12 por ano – e, na EGEAC, enquanto directora de programação, não tinha qualquer poder de adjudicação de seja o que fosse, nem qualquer poder hierárquico sobre ninguém. Nem um táxi em serviço podia meter sequer para mim, a não ser com autorização prévia da administração da EGEAC. Aliás, no que toca a 'maridos', como é público, o então presidente do Conselho de Administração da EGEAC é marido da então gestora, e actual directora do Teatro São Luiz e nunca isso foi um problema ou levantou questões.
"Consegui ao longo de seis anos apoios de mais de 200 mil euros. A Vodafone deu 75 mil euros para digitalizar a biblioteca de Pessoa"
Como estava a CFP quando entrou?
Quando entrei na CFP há seis anos, o orçamento anual era de 15 mil euros. Consegui apoios ao longo destes anos de mais de 200 mil euros, através da minha rede de contactos. Cheguei até a ser criticada por ter pedido um patrocínio à Leya, que é a minha editora. E é verdade. Eles tinham acabado de criar o prémio Leya, de 100 mil euros, e eu pedi-lhes metade disso para apoiar a CFP e fazer serviço público. Com essa verba, fizemos uma exposição que ainda hoje circula pelo mundo, um festival lusófono e um programa para a RTP com pessoas a ler Pessoa. A Leya ainda publicou dois volumes com o acervo da CFP. À Fundação Vodafone Portugal, então dirigida por António Carrapatoso, pedimos 75 mil euros para disponibilizar online a digitalização integral da biblioteca do Pessoa, que é o tesouro da casa, e agora está definitivamente salvo e disponível. Repito que eu apenas podia solicitar patrocínios – mas nunca tratar das adjudicações, assinar protocolos, contratos, ou o que quer que fosse, dado que não era funcionária pública. Até Caetano Veloso e Maria Bethânia, meus amigos pessoais, vieram à CFP: ele fez uma conferência, ela um recital, sem cobrarem um cêntimo. Sinto que dei o meu melhor e tenho a consciência absolutamente tranquila.
Houve alguma investigação?
Fui convidada a responder a um inquérito interno a que não era obrigada. Acedi porque nunca tive nada a esconder, muito pelo contrário, e gostaria de perceber o objectivo desse procedimento, que sinceramente nunca percebi – mas até hoje não me foi facultado o resultado desse inquérito, embora eu o tenha pedido insistentemente, quer à administração da EGEAC, quer à Procuradoria-Geral da República. É muito desagradável ler notícias de um inquérito que atinge a minha pessoa sem saber do que se trata.
Saiu magoada?
Sim, claro. De repente, senti que se erguiam forças contra mim cuja origem ou motivos eu nem sequer entendia: invejas? Aproveitamento político? Não sei. O ambiente ficou turvo e eu não trabalho em ambientes tóxicos. Mas gostei muito de trabalhar na Casa Fernando Pessoa. Conheci ali pessoas muito dedicadas. E orgulho-me do que conseguimos. Uso o plural porque este é necessariamente um trabalho de equipa. Por outro lado, aos 52 anos senti que estava na hora de fazer aquilo que realmente queria, que é escrever a tempo inteiro.
"Na hora da minha saída o António Costa não me deu uma palavra. Ao longo dos anos elogiou-me por eu fazer omeletas sem ovos"
O António Costa não disse nada na saída?
Nem uma palavra, o que acho muito triste. Ao longo dos anos fez vários louvores públicos e privados e disse várias vezes que eu fazia omeletas sem ovos, mas, na saída, nada.
Entrevista a Telma Miguel, in revistaTabu – semanário Sol (Edição de 20 de Março de 2015)
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