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Desamparo | Entrevista | José Fialho Gouveia | Diário de Notícias

 

Dentro de Ti Ver O MarDesamparo – Romance
de Inês Pedrosa
Edição portuguesa: 320 páginas, Dom Quixote.
Edição brasileira: 296, Leya
Edição croata: 208, OceanMore

 

 


Desamparo, o novo romance de Inês Pedrosa, chega às livrarias no dia 16. A escritora concorda com Eduardo, uma das suas personagens, quando diz que o grande problema do país é o "analfabetismo moral"

Para a escritora, a palavra 'desampar'o contém tristeza, solidão, insegurança e desafio.

Comecemos pela epígrafe, de Clarice Lispector: "Agora conheço o grande susto de estar viva, tendo como único amparo exatamente o desamparo de estar viva." Estar vivo é um susto?
Sim, porque é sempre imprevisível. O título do livro surge porque a palavra desamparo brilhou para mim nessa frase. Achei-a adequada aos nossos tempos. É uma palavra que tem lá dentro tristeza, solidão, insegurança, mas também desafio.

É um livro com muitos filhos, mães e pais desamparados uns pelos outros. Qual foi o ponto de partida para todo este desamparo?
O clique foi a história da Jacinta, umas das personagens, que é inspirada numa história real. Essa mulher, que teve a experiência de ir para o Brasil arrastada pelo pai e que só veio a conhecer a mãe 50 e tal anos mais tarde, corresponde a uma pessoa que conheci, de quem gostava muito e que já faleceu.

Diz Jacinta: "Amei um homem apenas. Ramiro sofria de falta de pai como eu de falta de mãe. As faltas partilhadas são o que mais consolida a intimidade entre as pessoas." Concorda com ela?
Essa é uma das muitas curiosidades humanas. Há muitos anos li um livro sobre terapia familiar em que os autores contavam uma experiência muito curiosa. Eles juntavam pessoas que não se conheciam numa sala e, no início, pediam-lhes que não falassem uns com os outros, que ficassem só a olhar-se. Só depois desse período é que escolhiam com quem queriam trabalhar. Mais tarde, com o avançar do processo de terapia, verificava-se que escolhiam sempre outras pessoas com os mesmos tabus e com o mesmo problema profundo. Sem que tivessem consciência, as pessoas reconheciam-se pelo olhar e pelo estar. Isto mostra até que ponto há afinidades não ditas; e essas afinidades têm que ver com aquilo que é censurado em nós.

Somos assim tão transparentes?
Somos mais transparentes do que pensamos. E só nos deixamos iludir pelas aparências porque as mascaramos muito e não acreditamos na verdade do olhar das pessoas. Achamos sempre que há uma estratégia qualquer e elaboramos uma teoria da conspiração. Por outro lado, vivemos muito depressa Temos pouco tempo para olhar para o outro.

Concorda com Jacinta quando diz que "sem um Deus para acertar as contas na eternidade a vida não faria sentido nenhum"?
Às vezes concordo. Não sei dizer exatamente em que é que acredito. Não acredito num Deus severo de barbas brancas, mas, à medida que a pessoa vai passando pelo tempo e vai perdendo gente, há realmente a sensação de que os nossos mortos velam por nós. Essa convicção tem-me ajudado.

Isso não será uma estratégia de autodefesa?
Talvez. Muitas vezes penso que gostava que fosse verdade a ideia de reencarnação da religião hindu. E se calhar é. Talvez seja por isso que há pessoas muito velhas que não sabem nada, e outras muito novas – como Malala – que parecem já ter vivido antes.

Clarisse, outra personagem do seu livro, tem "a sensação de que há espíritos de várias épocas que se repetem e às vezes se cruzam e se reconhecem"...
Sim, Clarisse é jornalista, tem a minha idade e reflete muito daquilo que eu penso.

Ela diz que foi "aprendendo que a capacidade de voar através da noite da dor importa bem mais do que a experiência". Quer concretizar?
Essa frase nasce de uma outra que me disse Agustina há muito tempo. Estávamos a conversar sobre uma então jovem escritora e ela fez uma observação muito curiosa: "Tem talento e escreve muito bem, mas vai ter de compreender que a experiência não é o mais importante para se escrever. O mais importante é a compaixão ou a capacidade de partilhar a paixão dos outros". Tenho verificado que ela tinha razão. A experiência pode também ser pensamento ou sentimento e há de facto pessoas que não são capazes de se pôr no lugar dos outros. Eu penso que tenho essa qualidade.

A crise também está muito presente ao longo do livro. Portugal está desamparado?
Muito. Fomos sempre habituados a viver num espírito providencial, à espera do pai bom ou do pai mau. Temos essa relação com o Estado até hoje. Mas sim, acho que em Portugal vivemos um grande desamparo de coragem e de unidade.

Para outra das personagens, Eduardo,"o problema de fundo do país é o analfabetismo moral"...
Penso muito nisso. Analfabetismo moral significa sermos submissos aos chefes e arrogantes para com os de baixo. Ainda somos um país muito estratificado socialmente, com castas que se perpetuam.

No livro aparece uma citação do discurso de Natal de Passos Coelho em 2012: "Para mim não existe forma mais elevada de coragem do que aquela que tem sido diariamente demonstrada pelos portugueses." O primeiro-ministro tem razão?
Não. Temos mostrado seguidismo, submissão e demasiada resignação.

Por medo?
Sim, por medo. As pessoas têm medo de perder, de ser prejudicadas, mas muitas vezes não percebem que já estão perdidas, que já estão no chão e que do chão já não vão passar. Quem se deixa esmagar uma vez, deixa-se esmagar vinte. Sozinhos não podemos fazer nada? Malala, por exemplo, pôde.

Entrevista a José Fialho Gouveia, rubrica Temos de falar sobre isso, © 2015 Diário de Notícias, 08/02/2015

 

 

 
 
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