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A ETERNIDADE E O DESEJO | Entrevista | AntOnio Gonçalves Filho | Jornal O Estado de São Paulo, Caderno de Cultura

 

Dentro de Ti Ver O MarA Eternidade e O Desejo – Romance
de Inês Pedrosa
Edição portuguesa: 208 páginas, Dom Quixote
Edição Brasileira: 181 páginas, Alfaguara

 


Desejo e eternidade na obra de padre Vieira

Inês Pedrosa fala do caráter visionário do jesuíta no ano de seu 400º aniversário.

Em seu primeiro romance ambientado no Brasil, A Eternidade e o Desejo, (Alfaguara, 185 págs., R$ 29,90), lançado na 6ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a escritora portuguesa Inês Pedrosa presta sua homenagem aos 400 anos do padre Antônio Vieira ao contar o drama de uma historiadora e professora universitária portuguesa. Clara aceita viajar ao Brasil acompanhada de um amigo, Sebastião, e refaz os passos do visionário jesuíta, relembrando uma antiga paixão que a levou à cegueira ao tentar defender um professor da fúria de um marido traído, que atirou em seu amado. Inês, a exemplo de Saramago, usa a cegueira de Clara como metáfora da dificuldade de percepção do real. A perda da visão levaria a uma reflexão sobre as palavras de Vieira a respeito do sentido da eternidade como sinônimo do desejo, tema da conversa de Inês Pedrosa com o Estado, publicada a seguir.

O uso dos sermões de Vieira quase como uma ilustração em A Eternidade e o Desejo parece buscar obsessivamente uma correspondência entre a palavra e a imagem. Você escolheu os sermões pelas imagens que evocam? Era esse seu propósito?
Justamente. Quando li os sermões do padre, não percebi que ele também falava do desejo. Interessei-me no contraste desses sermões com a época contemporânea porque Vieira foi um visionário e perguntei-me como não se conhece nenhuma relação carnal, íntima, sua, sendo ele um homem tão sanguíneo, visceral, pouco identificado com um temperamento contemplativo. O Sermão da Nossa Senhora do Ó me deu a resposta para isso: a eternidade e o desejo são a mesma coisa. É uma frase completamente contemporânea, muito pouco barroca, sobretudo considerando que é do século 17. Esse sermão fala dos desejos de uma grávida, mas, como em todos os sermões, também de uma pequena ignomínia terrena que depois extravasa. Cada ignomínia é a ignomínia, cada desejo é desejo. Foi por isso que me apeguei a essa frase que une a eternidade ao desejo.

Vieira também fala dessa contradição que é nossa aspiração pela eternidade e o desejo de que as coisas acabem. Ou temos a consciência de sermos mortais sem desejarmos a eternidade, sendo infelizes, ou o contrário, o que traz a angústia da infelicidade eterna.
Sim. Tive uma educação católica e ainda me lembro dos livros de catequese com imagens do inferno em chamas e demônios picando pessoas de rostos desfigurados, contrastando com a imagem do paraíso, onde tudo eram flores, pessoas encantadas. Eu, que nunca me acostumei a ficar quieta, estava lá a contemplar, morrendo de tédio. Lembro que queria ir para o purgatório, onde, afinal, podia acontecer alguma coisa. Agora, a pequena eternidade que temos em vida basta-me. Agustina Bessa-Luís me confidenciou que não se apega demasiadamente nem às pessoas nem aos gatos. Tinha um gato que ela adorava e, durante uma viagem, ele, inquieto, deixou Agustina irritada. Ela, então, pediu ao marido que parasse o carro e colocou o gato para fora, apesar de todo apego que sentia por ele. Não tenho tantos anos quanto Agustina, mas entro numa fase da vida em que já perdi muitos amigos e vejo-me como o Orlando de Virginia Woolf, viajando pelos séculos sem criar empatia com ninguém, o que tampouco é fascinante. Acho que a eternidade possível é esta de não perder o desejo, o que é muito difícil. No fundo, a eternidade é a manutenção do deslumbramento. Infelizmente, vivemos num mundo globalizado em que se imagina que nada mais possa surpreender.

O padre Vieira é um personagem controvertido também por suas idéias e posições políticas, que o levaram a ser perseguido pela Inquisição. Você acabou de destacar sua vocação visionária, mas é preciso lembrar que seu Quinto Império pode também ser lido como um nostálgico sebastianismo. Você, que é uma mulher engajada, que defende o aborto, o casamento entre homossexuais e apoiou o candidato Manuel Alegre nas últimas eleições, como vê esse lado político de Vieira?
Acho que, se Vieira fosse vivo, ele certamente teria um blog. Ele é mesmo um personagem polêmico. Participei recentemente de um seminário sobre o padre e houve protestos de acadêmicos, escandalizados com as homenagens aos 400 anos de um homem que eles consideram um escravagista, apesar de ter lutado pela independência dos índios. É curioso: ele tinha um lado idealista e outro muito pragmático. Criou a primeira companhia de comércio com o Brasil numa época em que não era possível fazer a exploração econômica do país sem a escravatura. Pode-se criticá-lo, mas ele foi, decididamente, um visionário, tendo, por exemplo, sido um extremo defensor dos judeus.

Voltando ao romance, não haveria uma tendência na literatura portuguesa de abusar da metáfora, o que talvez seja uma herança barroca? Digo isso por conta da cegueira da principal personagem, Clara, cujo nome, aliás, já traduz uma intenção alegórica. Lembro que também Saramago usa igualmente a deficiência visual em Ensaio Sobre a Cegueira como sinônimo de falta de percepção do real.
Acho que talvez tenha mesmo a ver com a tradição barroca. Fala-se muito da poesia, mas acredito que nossas primeiras peças literárias sejam as crônicas de viagem de Fernão Lopes, que tinha uma grande inclinação para a metáfora. O barroco tem a ver com o absolutismo real e, portanto, com um certo medo que atravessou a história de Portugal, um respeito atávico pelo poder, um hábito de transformar as palavras de modo a não ser prejudicado por elas. Talvez seja por isso que me sinto tão tocada pela literatura brasileira. Em Portugal, tratar de sexo pode ser arrepiante, sobretudo se for uma escritora mulher. Maria Teresa Horta, uma poeta cuja obra é centrada na experiência erótica, nunca é convidada para nenhum congresso ou encontro. O ato sexual, de forma geral, em Portugal, nunca é descrito sem recorrer a metáforas. Por outro lado, acho que a metáfora ainda é uma das grandes forças expressivas da língua portuguesa.

Sei que você é uma opositora do acordo ortográfico, por considerar que ele provoca, na verdade, um desacordo, criando uma outra língua. Noto que os escritores portugueses são mais lidos no Brasil que os brasileiros em Portugal. Não há um desequilíbrio aí?
Só para falar de um escritor de quem gosto bastante, Bernardo Carvalho tem sido publicado por várias editoras portuguesas e até o Luiz Ruffato, que tem uma escrita experimental, já foi publicado. Outros grandes autores como Milton Hatoum e Raduan Nassar têm críticas boas nos jornais, mas a crítica já não tem poder, se é que algum dia teve. Digo que, se o dinheiro investido no acordo ortográfico fosse gasto com companhias aéreas para levar os autores brasileiros a Portugal, estou convencida de que seria melhor. Isso vai mudar.

Aqui, na Flip, estão dois grandes editores portugueses que não vieram acompanhar seus queridos escritores, mas para farejar autores para futura publicação em coleções dedicadas aos brasileiros. Você tem outro livro que se passa no Brasil, ainda inédito por aqui, também sobre o padre Vieira. É o livro que relata sua excursão pelo Brasil atrás da trajetória do padre, não?
Sim, chama-se No Coração do Brasil. É o relato dessa viagem que fiz em 2005. Não tinha interesse em produzir um livro sobre a excursão, então resolvi escrever seis cartas de viagem para cada um dos lugares que visitei no Brasil, revelando como os vejo agora e como deveriam ser no tempo dele. Fiquei muito feliz com os comentários de que ele parece escrito no tom do padre Vieira. Portanto, ficou um bocadinho como o século 17.

E, dos autores contemporâneos, quem você considera que levou adiante a mensagem do padre?
Nunca pensei nisso, mas acho que foi Fernando Pessoa, que chamava o padre de ''o imperador da língua''. Manuel Alegre seria também seu herdeiro, mas é um poeta diminuído pela crítica por não estar numa torre de marfim, idéia também que o Lobo Antunes vende, como se ao escritor fosse permitido escrever mas não participar da sociedade. Eu também tenho sido muito criticada por minha atuação política. Acusam-me de autopromoção. Pensando fora de Portugal, lembro do francês Paul Claudel e do Fernando Savater, até porque é alto, barbudo, corajoso e vai fundo em suas críticas que colocam a si e a seus filhos sob ameaça.

Entrevista a António Gonçalves Filho, do Caderno de Cultura d' O Estado de São Paulo (13/07/2008)

 
 
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