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Os Íntimos | Crítica | Maria Lúcia Dal Farra| Colóquio e Letras

 

Dentro de Ti Ver O MarOs Íntimos– Romance
de Inês Pedrosa
Edição portuguesa: 272 páginas, Dom Quixote
Edição Brasileira: 200 páginas, Alfaguara

 

 

"Temos de inventar uma ordem que permita a respiração do caos" Ana Lúcia Soveral

Excerto da contribuição desta personagem para o debate sobre a Beleza num colóquio da Casa de Serralves, a epígrafe acima pode bem ser tomada como um dos possíveis tons para a leitura do novo romance de Inês Pedrosa. Aliada ao anárquico, a "ordem espontânea" (então defendida por Soveral) parece ser fundamento precioso à invenção de uma obra que se movimenta no contrafluxo da narrativa corrente, facultando ao leitor, em lugar do confortante desenrolar (cambiante e acolchoado) de uma consciência, apenas a «massa suja de nervos e sangue», a hermética «caixa negra» que de facto ela encerra (p.19). O que inclui (quanto ao cânone ficcional) a fuga à regulação de tempos e temperaturas, a recusa da muleta dos aforismos, a ausência do suporte das descrições, dos cenários, dos episódios marginais, dos dados acessórios. Surrupia-se da vista do leitor o amadurecer moroso dos personagens, rescindindo aquele pacto que o tem mantido e entretido no leito de defendidas e compartilhadas águas. A bem dizer: aqui, as margens do texto transbordam e devastam territórios insuspeitos, expondo-lhes a aridez ou a seiva – fertilizando-os com inesperadas torrentes.
Pois é com tal impulso que Pedrosa constrói páginas de desassossego, eivadas de desafios, de ziguezagues à solta que atordoam o leitor e o arremessam a um beco imprevisto. Daí que o futebol, «ensaio aberto» (p.193), campo do maravilhamento, em que a beleza do arremesso falhado hipnotiza mais que o acerto, em que os passes controversos decidem outra direção; domínio onde o lúdico se candidata a enigma gozoso, fronteira ténue entre o cálculo e o sortilégio – possa ser sugerido como uma das metáforas plausíveis deste romance. E também porque o espírito gregário (embutido, aliás, no plural do seu título) paira sobre cada lance desta narrativa, muito embora tenda a contrariar-se naquilo que em si mesmo designa, visto que o colectivo muitas vezes se mostra individual, e que o íntimo acaba por se desvelar apenas como aparente, ampliando a vala entre vida pública e privada.
Romance redigido solitariamente em grupo, escrita passada de mão em mão, processo quebrado por descobertas instantâneas, ele distribui-se por cinco vozes que, confiantes no princípio de equipa que as insufla, se multiplicam ainda noutras mais, adensando essa pequena colectividade, espalhando-lhe acrescentamentos. Um pouco à medida daqueles legendários cavaleiros medievais postados em torno da távola redonda, esta trupe masculina do século XXI parece estar em demanda de algum graal que mal consegue vislumbrar.
Afonso, Augusto, Guilherme, Pedro e Filipe são os camaradas de longa data (traves de uma mesma casa; armação da invisível rede que permite e impede o golo?), que se reúnem numa tasca lisboeta para o lauto jantar mensal, enquanto assistem a uma disputa televisiva: no caso desta precisa noite, entre o Porto e o Benfica. Acompanhando uma, pelejam entretanto noutra. Porque o jogo que se articula no largo plasma espelha-se no convívio deles, na conversação que empreendem, naquilo que dizem ou pressupõem, tácita e silenciosamente, nos ajustes ou desarmonias das suas vidas tão aproximadas e, ao mesmo tempo, tão desavindas – esta, sim, uma partida sem tempo regulamentar.
O romance desenvolve-se, pois, durante esse jantar de uma noite chuvosa, numa concentração de tempo, espaço e acção semelhante à da tragédia grega que, aliás, ele não é e se recusa terminantemente a ser. O seu desfecho (que poderia confundir o leitor) só na aparência desemboca num impasse, tudo não passando de uma pilhéria de mau-gosto aplicada ao narrador por sua amante: maneira de conferir um travo de género a esta ficção que, assim procedendo, comprova, além do mais, não ser nada «feminina»...
Deveras. Afonso, o narrador principal (sede da narrativa emprestada aos demais) não suporta certo tipo de romance, que lia na mocidade apenas para compreender o funcionamento psíquico das mulheres, no tempo em que ainda tinha pachorra para conquistá-las. Deplora nesse, como dotes femininos, a «mariquice das entrelinhas», o «enredo bordado», o clímax que evolui para a tragédia (p.17), as chatices «trágico-repetitivas» (p.193). Compreende-se por que a narrativa que ele está a engendrar se pretende evadir de tais estereótipos tidos como pechas de género...
As perspectivas acerca do que se narra variam muito segundo o feitio particular de cada um destes camaradas, cujo interlocutor primeiro é sempre o leitor. Afonso é cirurgião-oncologista e músico; Augusto é administrador de uma empresa discográfica e ex-militante de esquerda; Guilherme é representante de uma indústria farmacêutica e partidário do governo; Pedro é técnico de informática, castrado pela mãe possessiva, enquanto Filipe é artista plástico, falhado e intratável. Todos pertencem à crítica faixa etária da meia-idade.
Para além de pelejarem entre si, disputam também, mudamente, uma rodada com um outro grupo elíptico. As mulheres não comparecem à mesa e nem sequer são convivas – apenas Celinha, a filha do dono do restaurante, encarrega-se de as representar e de os servir. Ausentes na autoria da escrita, elas, todavia, interpolam-na como autênticas e actuantes interlocutoras, semeando no interior dos discursos um difuso poder que vai desde o ancestral prestígio de que gozam (enquanto princípio de vida) até à ameaça profunda de abismos de morte. De modo que a estabilidade narrativa se acha minada por esta coligação afastada (mas sub-reptícia), pelo teor camaleónico que lhe é próprio, pelo mistério da mutabilidade de que é emissária, força, aliás, suficientemente reconhecida pela ordem adversa: «as metamorfoses das mulheres assustam-me» (p.182); «As mulheres têm a agilidade de mudar de alma como mudam de vestido» (p.253); «as mulheres são uma espécie felina, rápida e afeiçoada a metamorfoses» (p.65).
Muito embora (como se há-de convir ao longo do romance) estes contornos diferenciais sejam abstracções tão-só classificatórias, visto que não passamos todos (e indiscriminadamente) de mero «formigueiro humano sem sentido algum» (p.261) - é esse regime de mutação (coisa de mulher!) que se acha na raiz da prenhez e das conversões narrativas. Tais «metástases incontroláveis» (p.125), que as palavras (seres de igual elemento) revelam ser, é que promovem a irradiação da narrativa e do grupo, expandindo-os, dilatando-os. De maneira que o romance que se queria «macho», escrito pela mão de cinco homens, acaba por se evidenciar, pateticamente, governado por elas...
O discurso de Afonso desdobra-se, assim, numa carta e num conto de Ana Lúcia, num conto de Orlanda Cohen, num trecho da biografia de Nabokov, em SMS enviados para o seu telemóvel e noutras narrativas sobre o passado da tribo. O discurso de Pedro converte-se na cópia e alteração do manuscrito de Jerusa (a jornalista brasileira morta à porta do Pavilhão Chinês), que tem como protagonista a paraplégica Vera que, mudada em Bárbara, há-de narrar as suas muitas vicissitudes de meia-estátua-e-mulher até chegar à contundente conclusão de que, afinal, a anormalidade é uma regra social.
O passado comum (que amalgama os camaradas nesta comunidade numa «espécie de conspiração contra o individualismo imperial», p.25) passa por África, pela experiência do mundo colonial, pelo salazarismo, pelo 25 de Abril – e também pela maneira de conceber as mulheres. Um deles, Augusto, recorre mesmo à aura de militante torturado como chamariz para a sua prática de sedução, incorporada há tempos no tipo grisalho de barba e cabelos longos - marca registada do perene inconformista. Já Jacinto, velho amigo bastante singular, mas infenso ao ritual «maçónico» do grupo, comunga, no entanto, a ideologia dos colegas no que concerne ao mulherio. É da sua lavra, por exemplo, o bizarro «manual de pilotagem», o espantoso «test-drive» a que as mulheres devem ser submetidas para serem aceites como companheiras. O cuidado com o carro novo tem de ser o mesmo diante delas: direção testada, assim como os faróis, os travões e o molejo do estofamento. O GPS, entretanto, pode ficar a cargo das «gajas», visto que a falta de rumo e da linha directa alimenta o atalho para o amor... Cabe, entretanto, ao condutor desconfiar dos últimos modelos, pois que a recente e infeliz moda acabou fazendo das mulheres um «esqueleto faminto com airbags falsos» (p.117)... O delicioso humor de Pedrosa perpassa homens e mulheres, e activa-se em ironia, por vezes mordaz, quando impele críticas (disseminadas pela narrativa) às letras, à política, à educação, aos costumes, à moral, às artes, à cultura local, enfim.
O tempo, a morte, o amor, o sexo, a amizade, com suas implicações e desdobramentos, são a trave-mestra de Os Íntimos. O trato diário com a morte (o oncologista é o seu mais privilegiado emissário), a transformação que o tempo impõe às pessoas (as metamorfoses, aliás) constituem traços cativos do discurso de todos os amigos. Mas em Afonso tais tópicas se fazem ainda mais familiares. Viúvo (comete um erro aquando do prognóstico de Leonor), ele perdeu a única filha (a garota Mariana, por equívoco de julgamento) e trava batalhas quotidianas contra o cancro que atinge sem distinção também às mulheres da sua vida – ocasião que lhe franqueia até mesmo uma eventual vingança dos tempos passados... Apesar da dubiedade constante da sua história amorosa (Leonor e Elizabeth de Manchester; Joana e Ana Lúcia Soveral, por exemplo), Afonso parece punir-se por todas as culpas ao coabitar com a primitiva e grosseira Joana - enervante, deprimente, egocêntrica. O tempo também é responsável por diversas conversões: a artista plástica Margarida passa, de ex-mulher de Afonso, a actual de Augusto; Clarisse, antiga amiga de Guilherme, torna-se, então, o seu próprio objecto de desejo; no manuscrito de Bárbara, Júlio, de caso amoroso remoto e esquecido, retorna como franco e permanente amor.
O romance também ilustra a diferente pertença que do tempo podem fazer homens e mulheres. Se eles «fazem tempo», elas, por sua vez, não têm «vagar» - vocábulo que se revela, por excelência, uma «propriedade utópica das mulheres. Uma espécie de continente ao qual elas aportariam, um dia, quando os filhos acabassem de crescer e partissem e os homens acabassem de envelhecer e perdessem o estro de as controlar.» (p.110)
A Lisboa desta noite (situada entre a Baixa, o Bairro Alto e o Terreiro do Paço) é uma linda mulher molhada (de gozo e de chuva) à mercê do vento, luzes embaciadas que esbatem os seus contornos e a tornam ora diáfana, ora impiedosa e crua, expondo o relevo dos corpos desabrigados na friagem desta madrugada do Terreiro do Paço percorrido por Afonso, já no encerramento do livro. O Porto, geografia outra, passado quase comum ao grupo, guarda uma máscula e altiva nobreza. Ambos, macho e fêmea, são referências telúricas fundadoras desse «país menstruado», feito «de sangue e dos humores das mulheres, que atordoam e excitam os homens» (p.25).
Os Íntimos é, por fim, o romance de uma geração em vias de extinção - iminência que se realiza na sua própria enunciação. Ou seja: é o epitáfio dessa estirpe aquilo que o próprio romance ritualiza no exercício da sua escrita. Com esses camaradas retratados por Inês Pedrosa escoa-se o tempo de validade das leis de uma ficção que teve então o seu apanágio: a preocupação com o telos, com a simetria da construção, com uma estrutura armada em motivos que se correspondiam e se integravam organicamente, enfim, com as consonâncias e dissonâncias que erigiam aquele edifício herdado de Aristóteles, num mundo que fazia sentido e que batalhava pelo equilíbrio.
Mas agora, tal como à Bárbara paralítica deixada de herança a Pedro, será preciso dizer a essa tradição já anacrónica: «Levanta-te e anda»! (p.167). Será necessário adequá-la às condições da nossa pós-modernidade, que vive do irregular, do anormal, dos fiapos e das sobras, da liquidez e da aceleração do tempo, da simultaneidade dos estímulos mais diversos. A «desarrumação» que preside hoje ao trabalho literário projecta o fragmentário como o único código condizente com a nossa presente História.

Maria Lúcia Dal Farra Colóquio & Letras (2010)

 

 
 
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