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FAZES-ME FALTA | CRÍTICA | Francisco José Viegas| REVISTA GRANDE REPORTAGEM

 

Fazes-me Falta






Fazes-me Falta – Romance.

Edição portuguesa: 226 páginas, Dom Quixote.
Edição Brasileira: 224 páginas, Alfaguara
Senza di Te, Edição Italiana: 255 páginas, Elliot/Scatti.
Du Fehlst Mir, Edição Alemã: 260 páginas, Luchterhand Literaturvlg.
Te Echo de Menos, Edição Espanhola: 245 páginas, Elipsis Ediciones
Still I Miss You, Edição Estadunidense: 298 páginas, Amazon Crossing

Um romance brutal

O novo livro de Inês Pedrosa, Fazes-me Falta, é uma tempestade, um fio de luz. Há muito tempo que isto não acontecia no romance português contemporâneo.

Virá um dia em que se dará razão aos cépticos, aos que não dançam nos palcos da literatura, aos que sabem distinguir entre o que é o brilho da luz e o reflexo dessa luz numa indústria que tem as suas artimanhas, os seus interesses, os seus preconceitos e os seus mestres. No meio do triunfo dos lugares-comuns, este romance de Inês Pedrosa é uma torrente danada, um fio de luz, uma tempestade à qual ninguém pode ficar imune ou indiferente. O que pesa, aliás, neste mercado e nessa guerrilha entre os vários poderes da literatura (cada um procura consagrar o maior número de afectos), é a indiferença – e se há coisa que o livro não promete, não concede nem permite é a indiferença. Porque é brutal, porque é belíssimo, porque (falando sobre a morte) trata cada nome como o sujeito de uma ressurreição. Há muito tempo que isto não acontecia no romance português contemporâneo.
A morte é o seu tema central. Melhor: o diálogo entre quem morre e quem lembra a morte.
Não há tema mais forte nem atrevimento maior, sobretudo quando o discurso sobre a experiência da morte propriamente se sobrepõe à sua proximidade ou à sua adoração. A morte é um assunto sério; nada de concessões. A morte atravessa as banalidades, torna-as dispensáveis – mas só nos damos conta depois. Que não era importante a roupa que se usava, nem os preconceitos, os falsos «estilos de vida», as palavras pomposas, os pormenores, «Altas Autoridades disto e daquilo, com automóveis, gabinetes e altíssimos salários para decidir dos limites da moralidade nas mais variadas áreas». Que os amores são plantações destinadas a serem destruídas pela tempestade – até pelas tempestades que este livro transporta como uma lembrança e uma maldição. Que nada de supérfluo vale realmente a pena e que os pecados de soberba, inclusive os menores, serão sempre relembrados. Há aqui uma armadilha: o livro de Inês Pedrosa caminha entre os labirintos da actualidade, nota-se nele a voz da autora propriamente dita (não é difícil descortinar uma ligação afectiva entre o que sabemos ser a opinião de Inês Pedrosa e o discurso da personagem que «fala sobre a sua morte»), como uma gentileza e um aviso.
E, para quem leu A Instrução dos Amantes (1992) e Nas Tuas Mãos (1997), há aqui uma redescoberta que se anuncia desde a primeira página: a redescoberta de Deus. «Não basta morrer para conhecer o sorriso de Deus – mesmo que, como foi o meu caso, se tenha vivido abismada nele uma vida inteira.» Ou: «Podemos amar no escuro, sim, podemos amar na luz sonâmbula da ausência, podemos tanto que inventámos Deus. Tu dizias que Deus era o teu personagem de ficção favorito. Mas não querias entender que os personagens de ficção existem tanto como tu.» Ou: «Ri-te, que Deus é riso.» Nesse diálogo incessante entre uma personagem morta e uma personagem sobrevivente, Deus é uma espécie de reserva de eternidade e para uso transcendental: «Há um exercício de sentimentos que não pode ser levado até ao fim. Um lugar onde a eternidade se instala e a novidade das vitórias desaparece. Um lugar familiar num cinema de reprise, que já só pode existir depois de morto – como recordação radiosa. Nós já tínhamos existido nesse lugar.»
E pelo meio, nesse diálogo, aparecem todas as recordações sobre a selvajaria do mundo e a sua barbárie, a sua leviandade, a leviandade dos outros.
Há muito tempo que não lia um romance assim. Se eu mandasse no júri do Prémio APE, já tinha um escolhido. Um eleito, mesmo.

 

Francisco José Viegas

Publicado na revista Grande Reportagem”, Agostode 2002

 
 
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