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Desnorte | Crítica | Silvia Souto Cunha | Visão

 

Dentro de Ti Ver O MarDesnorte – Contos
de Inês Pedrosa
Edição portuguesa: 194 páginas,
Publicações Dom Quixote
PVP: 14,90 euros

 

De coração nas mãos

Contos que poderiam ser romances, habitados por pais, amantes, mulheres amadas, filhos, sonhos arruinados, grandes esperanças.

Desnorte reúne 14 contos: três inéditos e muitas histórias breves, retrabalhadas com estilete fino.

Às primeiras linhas deste livro, na convulsão identitária de uma nova ordem amorosa e existencial, uma mulher, transfigurada por uma canção a ela dedicada por um ídolo de juventude, diz-se "uma recordadora profissional". "Vivo de recordações, mesmo daquilo que ainda não fiz." Esta dinâmica, equilíbrio de acrobata oscilando, metros acima do chão, no fio precário entre passado e futuro, entre desejo e meta, entre o ideal e a frustração, entre aquilo que alguém acreditou que seria e a pessoa em que se tornou, atravessa muitas personagens destes 14 contos de Desnorte. Não que todas as histórias sejam lamentos e ais e remorsos; pelo contrário, há júbilo na lucidez adquirida a duras penas, na libertação depois da tormenta, na consciência de que tudo acontece, nem sempre por boas razões – apenas acontece. É a vida, caros.
Acontece, por exemplo, que um pai pescador perde os direitos parentais sobre a filha que criara sozinho, atravessando "doenças, monstros, birras, pratos de sopa lançados às paredes", desde que a mãe os abandonara, no conto Mar Aberto. Um dia, a mãe volta, com advogado e marido novos, leva a criança - matéria real de jornais - e será a literatura a tecer fios misteriosos na distância entre pai e filha. Acontece também um luto por uma amizade em Suzana: um escriba apercebe-se que a mulher a quem votou uma devoção por 40 anos é uma deusa de pés de barro - deus falível, diria Borges. Acontece ainda, em A Posse, que uma aluna apaixonada sublima perversamente a obsessão: torna-se ama em casa do ex-professor e assombra-lhe os sonhos com escritos eróticos. E muito mais acontece no livro, uma coleção de romances potenciais, ilustrada por Gilson Lopes, e alinhavada com essas frases buriladas até ao aforismo de Inês Pedrosa: escritores em congresso, perdidos de corpo e de inspiração, nos quartos de hotel; Sinatra a fazer elogios fúnebres a Amália; Madame Bovary, Quixote e o Principezinho a derrotarem um fundamentalista suicida num avião – é o poder da literatura, caros.

Silvia Souto Cunha, Sete (suplemento da revista Visão), 10 de Março de 2016

 

 

 
 
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