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Desnorte | Crítica | João Gobern | Diário de Notícias

 

Dentro de Ti Ver O MarDesnorte – Contos
de Inês Pedrosa
Edição portuguesa: 194 páginas,
Dom Quixote – disponível nas livrarias em Portugal a partir de 23 de Fevereiro de 2016
PVP: 14,90 euros

 

A entrega dos sonhos

Está há muito desvendado o código de acesso que garante serem as histórias curtas capazes de deixar marcas profundas. Aqui, por maiores que sejam as suas inclinações contemplativas, por devoção que mantenha com paisagens e cenários, o escritor deve – sob pena de acabar numa via rápida para o esquecimento – poupar tempo a modelar personagens, a precipitar acontecimentos, a agilizar ideias. Isso implica, as mais das vezes, que o autor intervenha e tome partido, ao invés de se restringir a um gozo neutro da vida das "marionetas". Desde o primeiro (Voz) ao último (As Mais Altas Coisas) momento deste Desnorte superiormente orientado, Inês Pedrosa prova uma sábia – ou intuitiva – capacidade para aplicar, à escala do número de páginas, a mesma intensidade com que nos põe a brindar aos seus romances. Pode até dar-se o caso de aqui se reencontrar prosa semeada e colhida noutras paragens - acontece em Frank Esperando Amália, já lido numa das muitas iniciativas que assinalaram por cá o centenário de Sinatra, pequeno mas rigoroso bailado que permite o salto da biografia para o contraponto entre duas almas que talvez merecessem ter-se cruzado mais cedo e mais vezes. Até nesse caso particular, há uma função particular de que esse texto acaba encarregado, percorrendo mais uma escala nos tópicos de diversidade que parecem ter servido de norte magnético à autora, que muda de perspetiva, de atitude, de registo, porventura de objetivo ao longo de todas as 14 narrativas que aqui se reúnem. Ou melhor: que para aqui convergem, uma vez que a distância intrínseca entre cada uma delas não diminui.
Alinhem-se, como argumentos mais dependentes de gostos e proximidades que de exatidões sentenciosas. Há uma torrente de afetos que se desprende de Mar Aberto, onde um pai, pescador, analfabeto, percebe que só a leitura lhe permitirá manter a proximidade da filha, a quem começa a enviar todos os livros que envolvam a palavra "mar" ou derivadas ... Há uma amoralidade cortante em Antes Morta, em que um pé humano se antecipa ao resto do corpo, ao aparecer nas ondas da praia da Ericeira, para depois se concluir que essa descoberta poderia – sem cuidados dos sobreviventes – desencadear a revelação de um triângulo sexual, sem nada de amoroso, improvável. Há uma aproximação à realidade nas investidas e recuos de Suzana, a amiga intocável que atravessa as vidas de um homem. Há o momento de fervor literário, ironicamente designado por A Salvação da Europa, em que Dom Quixote, a Madame Bovary, a Sibila (a nossa, de Agustina), o Principezinho e mais uns quantos precisam de se concentrar e de unir esforços para sobreviverem a um terrorista que se apodera do avião em que viajam juntos... Há até, imagine-se, um capítulo, A Páginas Tantas, em que somos confrontados com relações, paixões, sobressaltos, cumplicidades, tudo gerado durante uma série de encontros de escritores que, sem margem de erros, se assemelha às Correntes d'Escritas que a Póvoa de Varzim acolhe há muitos anos. Acredito que não faltará quem, na edição que aí vem, se passeie a tentar identificar "quem é quem" nesta investida de Inês Pedrosa pelo território "familiar". Cada um destes compassos traz um sinal diferente, uma cor distinta, um perfil próprio. De alguma forma, assemelham-se a sonhos de que, numa ou noutra ocasião, todos nos aproximámos. A vantagem: os sonhos esvaem-se, esboroam-se, tornam-se imprecisos, por culpa das nuvens; aqui, com a escrita rica, dinâmica, sólida, insinuante de Inês Pedrosa (a mesma mulher que escreveu Fazes-me Falta e Os Íntimos), esses "sonhos" – ou pesadelos ou delírios, consoante os contornos – aparecem fixos, à mão de semear, em cheio no alvo. E mais: com o livro, faz a entrega dos sonhos em casa. Prontos a usar.

João Gobern, Diário de Notícias (13 de Fevereiro de 2016)

 

 

 
 
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