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Desamparo | Crítica | David Pimenta | Espalha Factos

 

Dentro de Ti Ver O MarDesamparo – Romance
de Inês Pedrosa
Edição portuguesa: 320 páginas, Dom Quixote.
Edição brasileira: 296, Leya
Edição croata: 208, OceanMore

 

 


O "Desamparo" provocado pela ausência de valores

Desamparo, de Inês Pedrosa e publicado pela D. Quixote (Leya), é um fiel retrato de Portugal na actualidade. Um sistema longe de ser próspero, com todos os ingredientes para as pessoas não acreditarem em dias melhores. Mas todas as personagens deste livro são pontos de esperança, num Portugal que pode ser um «lugar de consolação».
«Um silêncio em bruto, como se o torno do mundo não tivesse ainda começado a rodar», assim começa o novo livro de Inês Pedrosa colocado à venda na segunda-feira em todas as livrarias portuguesas. Uma espécie de silêncio profundo está presente em todas as personagens e cenários descritos nas mais de trezentas páginas deste Desamparo.
No percurso de Jacinta, Raul, Clarisse, Alice, do tão "ausente" Rafael ou de Ramiro há uma ausência gritante de auxílio e de proteção. São personagens íntimas de uma boa parcela da população portuguesa, com um cenário e histórias cada vez mais paralisadoras devido à ausência de valores em todas as gerações, retratada em vários capítulos da obra. «Nas noites de solidão navego pelas redes sociais, crio um personagem cínico, crítico: provoco, insulto, insultam-me, vou procurando fazer que existo assim», na visão de Raul, que continua a afirmar que há «muito tempo que não troco ideias ou interajo com um amigo de carne e osso. Onde estarão? Emigraram? Com a crise parece que sumiram.»
Jacinta Sousa começou a viver em Portugal para cuidar da mãe Margarida, após uma estadia de cinquenta anos no Brasil, a viver com o seu pai. O enredo de Desamparo começa com o desmaio de D.ª Jacinta no pátio da sua casa, situada na aldeia de Arrifes, em Lagar («A mulher caiu perto da porta, longe das duas árvores do quintal, sobre a laje ardente, inundada de sol»). Caída no chão, com um calor aterrador, e vários pensamentos na sua cabeça: um desejo de rever o filho pródigo, Raul, e ser, desta forma, salva da falência do corpo. Numa aldeia em que todos conhecem Jacinta, ninguém se apercebe e, consequentemente, socorre a pobre idosa. Uma idosa ricamente caracterizada pela vida como modista no Brasil e uma paixão cega por Ramiro, à medida que cuida dos três filhos: Rafael, Rita e Raul. Filhos despedaçados pela tensão existente entre este casal, com resultados à vista mesmo na verdadeira identidade de Rita.
O contexto ricamente oferecido a cada personagem, em especial a Raul, leva o leitor a compreender todas as acções do presente: Jacinta morrer aos poucos no hospital, à espera da morte certa, mas tal não acontece antes do leitor entendê-la («No Brasil eu sempre fui a Portuguesa; em Portugal passei a ser a Brasileira (…) Agora me dou conta de que, ao contrário do que sempre pensei, isso é não ter falta de personalidade, não – é antes ter personalidade a dobrar»).
A sensação de desamparo, já presente na fadista Rosa Cabral do livro Dentro de Ti Ver o Mar, não larga qualquer página desta obra. A personalidade de Raul – pessimista, desanimado, com tendência para adivinhar o futuro no pior cenário possível – é catalisadora de toda a escuridão da sua vida, misturada e enrolada em toda a crise económica sentida em Portugal: com um emprego num call center, sem capacidade de cuidar da mãe diariamente e a viver num quarto alugado, sem ajuda da família mais próxima, antes de se mudar para Arrifes. Esta personagem criada por Inês Pedrosa pode ser comparada ao protagonista do romance As Primeiras Coisas (Quetzal, 2014), de Bruno Vieira Amaral, numa situação de desemprego e divórcio que o leva a ficar desamparado no regresso ao seu bairro social na margem sul, da região de Lisboa. Apesar de Raul não se encontrar desempregado, a proximidade com esse estado leva-o a fechar os olhos para qualquer tipo de felicidade: na família ou amorosa.
Num momento em que a personagem principal, Jacinta, é atingida pelo mais infortúnio destino todos são colocados à prova: qualquer habitante de Arrifes deseja mostrar ao próximo como sempre cuidou, vigiou e acompanhou a idosa "brasileira". Vidas de aparência, em que o mais importante é mostrarem o bom coração aos vizinhos dos lados e aos de cima e de baixo. Neste Desamparo constata-se que é difícil ser humano: ajudar o próximo, numa situação de aflição, sem pensar em primeiro nas necessidades individuais («Vivia-se na era da presentificação pura: ninguém devia nada a ninguém, cada um estava entregue a si próprio, livre das grilhetas da gratidão e das sujeições da história.»).
Mas no meio de todo a falta de proteção há sempre uma pequena luz de esperança: no momento em que Raul encontra o amor e esperança ao lado da ex-jornalista Clarisse, longe do meio jornalístico devido a um processo de difamação contra si. Longe vão os dias brilhantes, em que Portugal vai prosperando. Há um ataque bem lançado à sociedade portuguesa ao longo de toda a obra («Os videirinhos da política têm raiva a estas figuras que arregaçam as mangas e trabalham a favor da plebe, com discrição e competência») e, nos últimos capítulos, é notório o sinal positivo oferecido. Mesmo na miséria, há possibilidade para se encontrar felicidade num país tão estilhaçado por políticas de austeridade e corrupção. «Este país que se diz triste é afinal um lugar de consolação», afirma Raul. E, às páginas tantas, é um homem com razão.

Nota final: 9/10

David Pimenta, no blog Espalha Factos (18/02/2015)

 

 

 
 
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