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Desamparo | Crítica | Maria Helena Sansão Fontes | Colóquio/Letras

 

Dentro de Ti Ver O MarDesamparo – Romance
de Inês Pedrosa
Edição portuguesa: 320 páginas, Dom Quixote.
Edição brasileira: 296, Leya
Edição croata: 208, OceanMore

 

 

Desamparo

Desamparo: «Estado daquilo que ou de quem se encontra abandonado, privado de ajuda material e/ou moral.» (António Houaiss, Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2001). Alguns sinónimos listados reforçam essa ideia de abandono moral ou material implícito no conceito, tais como: abandonado, carecente, carente, desabrigado, desagasalhado, desassistido, desfavorecido, desprotegido, destituído, desvalido, enjeitado, ermo, órfão, só, solitário.
De facto, quanto mais avançamos na leitura do último romance de Inês Pedrosa, mais nos damos conta do profundo desamparo que, de formas variadas, marca as trajetórias das muitas personagens que protagonizam a história, na maioria das vezes urdidas pelas mesmas em seus relatos, constituindo assim a multiplicidade de vozes narradoras. Dividido em trinta e cinco capítulos, Desamparo mapeia a vida de suas personagens, seja pela memória, pela interioridade ou mesmo através do narrador omnisciente. As vidas que se entrelaçam falam-nos de afetos, de frustrações, de desencontros, de solidão, de medos, de culpas, de desenganos e de muitos outros sentimentos que deixam suas marcas e configuram as personagens, apontando-lhes os caminhos a seguir, cheios de errâncias e desejos de que tudo fosse diferente.
Jacinta e Raul, mãe e filho, personagens centrais, têm também o espaço físico como motivo de desamparo no sentido de desabrigados, desagasalhados. Jacinta é de origem lusa, mas emigrou para o Brasil com apenas três anos. Seus sentimentos confundem-se entre as lembranças dos braços maternos de que foi apartada e da nova pátria à qual se apegou, onde cresceu, criou os filhos, foi feliz e infeliz.
«No Brasil eu sempre fui a Portuguesa; em Portugal, passei a ser a Brasileira», desabafa Jacinta num ponto qualquer de seus pensamentos já atordoados, com a proximidade da morte. Raul, em movimento contrário, nasceu no Brasil, mas o sangue português clama por sua pátria de origem. No Brasil, perdeu a mulher que amou, perdeu-se também como homem, como artista, como arquiteto, como filho de um pai ausente, perdeu-se dos irmãos, que, diferentes dele, centram-se em seus umbigos, sem culpa ou busca de redenção. «Esse pequeno, belo e inocente Portugal sempre havia sido para mim uma possibilidade, uma janela de escape» (57). A mesma inquietação identitária atormenta, portanto, as duas personagens.
Além do desamparo da solidão, do desamparo da ausência de identidade, do desamparo dos desafetos e das frustrações, outro tipo de desamparo une Jacinta e Raul: a culpa. A própria mãe tem a lucidez suficiente para essa constatação em relação ao filho: «Culpado, como eu, de ter duas pátrias e não encontrar compatriotas em nenhuma. Culpado de estar pobre, num país de pobres, e com o sotaque errado. 'O brasileiro' em Portugal» (27). Raul carrega a culpa durante todo o seu caminho pela vida. A culpa dos que possuem consciência dos seus limites diante da dor alheia e sensibilidade de mais para não sofrer por isso. Daí, a dificuldade de entregar-se ao amor, de permitir-se ser feliz, depois da morte da primeira mulher: «A minha alma ficara trancafiada no caixão de Laís, embrulhada numa mortalha de culpa» (46).
A ambiguidade que configura os dois países no romance de Inês Pedrosa, tendo seu ponto de partida na complexidade das personagens, funciona como crítica que transita comparativamente entre os dois espaços. São abordadas questões identitárias, mas também afloram na narrativa referências políticas que vão de Salazar a Brizola, da Revolução dos Cravos à ditadura militar no Brasil, ou à situação dos imigrantes ilegais, não só em Portugal mas por toda a Europa: «Os imigrantes ilegais na Europa são autênticos cidadãos de segunda, vivem sob um pavor que não deve ser muito diferente de outros tempos em que as pessoas eram perseguidas pela raça e pela religião» (118).
Assim, à medida que a narrativa se desenrola, tomamos contacto com inúmeras personagens, cada qual revelando uma faceta do ser humano comum, mas sempre condenado por suas imperfeições e malogros. A morte é abordada sob vários ângulos, mas o desamparo da velhice e da solidão, especialmente, dá o tom funesto de uma realidade que atinge todos nós. Jacinta sente o espectro da morte pela nostalgia de uma vida desvivida no sentido da felicidade, e na constatação de sentir-se um estorvo para o único filho que dela se ocupa deveras. Nesse ponto, assinala-se a crítica ao desamparo da velhice, à indiferença dos filhos, à disputa e ganância pela parca herança material, ao desamor. Por outro lado, mais se acentua a culpa de Raul, impotente diante da doença materna e do final inevitável.
Entretanto, nem só de tristezas e decepções se tece Desamparo. A pena de Inês Pedrosa também se apodera brilhantemente de referências artísticas atuais ou que marcaram diferentes épocas, especialmente no Brasil. As letras de música popular brasileira citadas, além de muitas informações sobre acontecimentos e nomes que eternizam épocas e festividades brasileiras, revelam que a autora se sente à vontade no Brasil, pela intimidade com que reverencia ícones populares que fazem parte da cultura do país. Noutros momentos, alusões são feitas ao comportamento dos brasileiros e aos valores culturais, muitas vezes comparados aos de Portugal. As questões femininas são uma crítica constante, já que são conhecidos os preconceitos que sofrem as brasileiras em Portugal, por sua fama de sedutoras e de fácil conquista, tornando-se uma ameaça para as portuguesas: «Eu sou 'a brasileira' boa da aldeia, porque sou demasiado velha para evocar os fantasmas das brasileiras sedutoras» (27).
Observa-se que nessa espécie de saga, na aceção de «narrativa fecunda em incidentes», temos praticamente a personagem Jacinta como centro do romance. Dela emana todo o resto: a família desunida e conturbada, os amigos e amigas que lhe prestam homenagens ou têm com ela uma relação de amor e ódio, ou inveja, ou qualquer outro sentimento menos nobre, por alguma passagem de suas existências em comum. Dessas relações conturbadas, sobressaem os comportamentos das pessoas, especialmente os moradores de Arrifes, a pequena aldeia portuguesa onde se passa quase todo o enredo. Percebe-se que há, por parte do narrador principal e omnisciente, o objetivo de revelar as complexas relações humanas, eivadas de deveres sociais, mas também limitadas por sentimentos e ressentimentos pessoais. A doença e a morte de Jacinta são assim o pretexto para a denúncia de situações comuns aos indivíduos de qualquer comunidade, cuja solidariedade depende da consciência de cada um, mas que se impõe como necessidade de todos diante da velhice, da doença, da morte.
Alternando com esse presente doloroso na vida de Jacinta, há os momentos trazidos por sua memória, a maior parte dos quais referentes aos cinquenta anos vividos no Brasil. Esse intercalar entre suas lembranças e os relatos do narrador omnisciente sobre sua vida ocupa praticamente metade do romance. Até ao capítulo 13, Jacinta é o foco central. A partir de então, a saga segue estruturada pela figura de Raul.
Muitos episódios periféricos ligam-se aos protagonistas através de suas relações de afeto. Raul, com sua constante culpa e dificuldade de entrega amorosa, passa por alguns relacionamentos mal resolvidos, «relações falhadas», como ele mesmo considera, até encontrar aquela que será sua mulher e amor bem realizado, Clarisse. Refletindo sobre isso, a personagem faz uma digressão pertinente pelas relações de afeto na pós-modernidade: «O inevitável declínio das relações amorosas é uma das bases conceptuais do mundo contemporâneo. Tem gente que dedica a vida a estudar a duração da atracção física e a curva de crescimento do tédio conjugal. Parece que isso é tão científico como a composição da atmosfera e a elaboração das anestesias» (51).
Além do caminho sinuoso de Raul revelar suas fraquezas e desenganos, muitas vezes serve para salientar atitudes humanas ligadas à figura da mulher. Assim, a rápida passagem de Vanessa pela vida de Raul revela a crítica ao comportamento masculino diante da personagem. Vanessa é caracterizada como uma jovem trabalhadora e dedicada ao sustento da mãe doente e da filha que lhe restou de um de seus malsucedidos relacionamentos, depois de ser abandonada pelo marido, que levou com ele os três filhos que tiveram. A crítica incide no facto de Vanessa se ter habituado a ser maltratada pelos sucessivos companheiros, como se fosse natural, como se houvesse nela «qualquer coisa que conduzia os homens à violência». Sem uma ligação efetiva com Raul, Vanessa tem um fim trágico no desfecho do romance, assassinada por um ex-namorado violento, que não suportou a sua espontaneidade e alegria jovial. Além da crítica ao machismo, esse episódio funciona também no romance como pretexto para ressaltar o comportamento da comunidade diante do facto de alguém precisar de adotar a criança órfã e desamparada que sobrevive à tragédia. Mais uma vez, uma situação comportamental gera reflexões acerca de responsabilidades sociais.
Clarisse preenche, ao lado de Raul, a última parte da narrativa. Depois de tantos desencontros, o amor chega de mansinho ao coração dele, meio de soslaio, meio enviesado, mas chega. Na conceção de Raul, ele não foi fadado para a felicidade, por isso é com um sentimento de incredulidade de sua parte que começa a ser feliz. O medo da entrega faz parte do medo de não merecer nenhuma ventura. Portanto, é com cautela que deixa o amor de Clarisse penetrar em suas veias, é com desconfiança que deixa acontecer o primeiro beijo da vida. Pela fala de Clarisse, reitera-se que «Raul nasceu desconfiado e pessimista». Cabe a ela tomar a iniciativa do primeiro beijo, bem como apontar a Raul o caminho da alegria. Cabe a ela transformar em confiança o talento artístico que Raul nega a si mesmo. Cabe a ela, enfim, o companheirismo possível, a aceitação sem limites, o amor incondicional.
Clarisse protagoniza o romance já quase no final, mas mostra-se forte, desinteressada e confiante na vida. Sua trajetória pessoal e profissional também fica configurada, revelando-se uma jornalista, cuja ética profissional e retidão de caráter fazem com que abdique da carreira bem sucedida em Lisboa, para radicar-se em Lagar, na aldeia de Arrifes. Fora injustamente condenada a pagar uma indemnização, ao denunciar no jornal, através de uma crónica, o caso de violência contra a criança entregue a uma instituição por recusar-se a passar os fins de semana com o pai, a quem acusara de abusos sexuais.
É evidente que o episódio descrito pormenorizadamente no romance tem como objetivo a crítica, não só à situação em si, de abuso de menores, com os agravantes judiciais e toda a hipocrisia que envolve a questão, como a várias situações semelhantes que atentam notadamente contra a liberdade de expressão, não apenas em Portugal, mas também noutros países. Clarisse, cuja história não é menos relevante que a de Raul, por sua vida familiar e afetiva, recebe como protagonista uma configuração que denota a valorização do feminino na narrativa, uma vez que cabe a ela, como mulher, trazer o brilho necessário à vida de Raul, iluminando também as pessoas que a cercam.
Muitas outras personagens, factos e acontecimentos enriquecem a narrativa, onde se percebe especialmente a sagacidade de quem é atenta a todas as situações que envolvem vida, relacionamentos, família, sociedade, política, urbanidade, poder e, por conseguinte, amor, desejo, morte, intrigas, ciúme, inveja, hipocrisia, traição, problemas sociais e injustiças, entre outros sentimentos, atitudes ou fraquezas humanas. Inês Pedrosa revela preocupações várias neste romance, mas consegue criar uma narrativa que, com todo o peso do viver, torna-se leve pela magia e sensibilidade de sua escrita.

Maria Helena Sansão Fontes, Colóquio/Letras – Fundação Calouste Gulbenkian, nº 193, Setembro/Dezembro 2016

 

 

 
 
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